A Inquisição no Brasil Colonial: atuação, características e casos
A Inquisição no Brasil foi um instrumento de controle religioso e social utilizado pela Igreja Católica, por meio de visitas do Santo Ofício, para reprimir práticas consideradas heréticas e manter a ortodoxia na colônia.

Introdução: o que foi a Inquisição
A Inquisição foi uma instituição criada pela Igreja Católica no final da Idade Média com o objetivo de combater heresias, ou seja, doutrinas e práticas consideradas contrárias à fé oficial da Igreja. Ao longo do tempo, a Inquisição se transformou em um poderoso instrumento de repressão religiosa e de controle social, sendo responsável por investigar, julgar e punir aqueles que eram acusados de desvio da fé cristã. Seus tribunais atuaram em vários territórios católicos da Europa e também nas colônias ultramarinas controladas por reinos como Espanha e Portugal.
A Inquisição portuguesa foi oficialmente instituída em 1536, com a criação do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa. Diferentemente do modelo medieval mais descentralizado, a Inquisição moderna portuguesa operava com maior estrutura burocrática e vigilância sobre práticas culturais, comportamentos sociais e crenças religiosas. O foco principal recaía sobre os cristãos-novos, descendentes de judeus convertidos à força ao cristianismo, mas também abrangia acusações de práticas supersticiosas, bruxaria, bigamia, sodomia, blasfêmia e leitura de livros proibidos.
Contexto histórico da chegada da Inquisição no Brasil
Durante o século XVI, o Brasil se consolidava como uma colônia portuguesa em expansão. A economia açucareira se desenvolvia com a introdução do trabalho escravo africano e o uso da terra em grandes propriedades, os engenhos. A presença da Igreja Católica era significativa, especialmente por meio dos jesuítas, que atuavam na catequese dos povos indígenas. Nesse contexto, o controle espiritual e moral da população era uma prioridade da monarquia portuguesa e da Igreja.
Embora a Inquisição não tenha estabelecido um tribunal fixo no Brasil, sua presença foi sentida desde os primeiros tempos coloniais por meio de visitas inquisitoriais. Tais visitas consistiam em expedições enviadas de Portugal ou de outros territórios para averiguar denúncias de heresia e outras condutas consideradas contrárias à doutrina oficial. Vale ressaltar também que muitos colonos portugueses que vinham para o Brasil eram cristãos-novos em busca de escapar da vigilância do Santo Ofício na metrópole. Isso fez com que o território colonial fosse considerado um espaço de possível "contaminação religiosa", o que justificava os olhos atentos dos inquisidores.
O que os inquisidores pretendiam no Brasil?
A ação dos inquisidores no Brasil tinha como objetivo principal a investigação e repressão de práticas religiosas e culturais vistas como heterodoxas. O principal alvo eram os cristãos-novos, suspeitos de manter práticas judaicas em segredo, o chamado "judaísmo clandestino" ou "criptojudaísmo". Muitos desses indivíduos ocupavam posições de destaque na vida econômica colonial, o que causava desconfiança e inveja entre outros colonos, incentivando denúncias.
Outro foco da atuação inquisitorial era o combate a práticas consideradas supersticiosas ou vinculadas a tradições populares, como a feitiçaria, o uso de amuletos, a crença em curandeirismo e as festas sincréticas. Essas práticas, muitas vezes associadas à população indígena, africana ou mesmo a portugueses menos instruídos, eram vistas como ameaças à pureza da fé católica.
Os inquisidores também buscavam impor a moral sexual e familiar imposta pela Igreja. Casos de bigamia, adultério e comportamento considerado escandaloso eram motivo para inquéritos e punições. Além disso, a leitura de livros proibidos, como obras protestantes ou filosóficas, era monitorada, sobretudo entre letrados e membros da elite colonial.
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Inquisição no Brasil: mecanismo de repressão usado para controlar práticas religiosas consideradas heréticas na colônia. |
Principais características da Inquisição no Brasil:
- Atuação sem tribunal fixo: a Inquisição nunca teve um tribunal permanente instalado no Brasil. Sua presença ocorria por meio de visitas periódicas enviadas de Portugal, nas quais inquisidores percorriam regiões coloniais recolhendo denúncias e processando os acusados.
- Foco nos cristãos-novos: os principais alvos eram os descendentes de judeus convertidos, suspeitos de praticar secretamente o judaísmo. Muitos deles haviam migrado para a colônia em busca de maior liberdade, mas continuaram sendo vigiados e perseguidos.
- Combate a práticas populares: a Inquisição reprimia costumes ligados à religiosidade popular, como feitiçaria, curandeirismo e sincretismos religiosos envolvendo elementos indígenas e africanos, considerados ameaças à ortodoxia católica.
- Estímulo à delação e controle moral: o tribunal incentivava a população a denunciar vizinhos e parentes, promovendo um clima de medo e vigilância. Condutas consideradas imorais, como a bigamia ou a blasfêmia, também eram alvo de punições.
A ação da Inquisição no Brasil
A Inquisição portuguesa realizou três visitas oficiais ao Brasil: a primeira em 1591-1595, chefiada por Heitor Furtado de Mendonça; a segunda entre 1618-1620, liderada por Marcos Teixeira; e a terceira entre 1763-1769, conduzida por frei Antônio de São Pedro. Essas visitas concentraram-se especialmente nas regiões do Nordeste, como Bahia e Pernambuco, mas também chegaram a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro durante o Ciclo do ouro.
Durante as visitas, os inquisidores recolhiam denúncias feitas pela população local, promoviam sermões eclesiásticos, e instauravam processos contra os acusados. As denúncias podiam ser feitas de forma anônima e eram incentivadas pelos representantes do Santo Ofício. Muitas vezes, rivalidades pessoais, disputas por heranças ou preconceitos sociais levavam à acusação de vizinhos e parentes.
Os acusados podiam ser presos, interrogados e submetidos a diversas formas de pressão psicológica, embora a tortura fosse utilizada com mais frequência nos tribunais da metrópole. Após o julgamento, as penas variavam desde advertências e penitências públicas até o confisco de bens e a prisão. Os réus mais perigosos, conforme o tribunal local julgava, eram enviados a Lisboa, onde podiam ser condenados a penas mais severas, incluindo a morte na fogueira, embora esse tipo de pena não tenha sido executado em solo brasileiro.
Consequências da Inquisição no Brasil
As consequências da atuação da Inquisição no Brasil foram diversas e afetaram tanto a vida individual dos acusados quanto a sociedade colonial como um todo. A vigilância constante e o estímulo à delação contribuíram para a criação de um clima de medo e desconfiança. Famílias inteiras podiam ser arruinadas por uma simples denúncia, muitas vezes sem provas concretas, o que minava os laços de solidariedade e favorecia a repressão de comportamentos divergentes.
A Inquisição também teve um impacto econômico, sobretudo entre os cristãos-novos que atuavam no comércio e na produção. O confisco de bens e a prisão de comerciantes e artesãos resultaram em perdas materiais consideráveis. Além disso, o preconceito institucionalizado contra os cristãos-novos limitou sua ascensão social e sua integração plena na sociedade colonial, perpetuando estigmas que se prolongaram por séculos.
No campo cultural, a censura e a vigilância sobre as ideias dificultaram a circulação de obras filosóficas, científicas e literárias que contrariassem a ortodoxia religiosa. Isso contribuiu para o atraso no desenvolvimento de uma cultura letrada mais plural e crítica no Brasil colonial. Ademais, as práticas populares de origem africana e indígena passaram a ser mais intensamente reprimidas, favorecendo uma homogeneização religiosa que buscava apagar a diversidade presente na colônia.
Como e por que terminou a atuação da Inquisição no Brasil?
A decadência da Inquisição no Brasil se inseriu no contexto mais amplo de transformações ocorridas em Portugal e na Europa a partir do século XVIII. O Iluminismo, com sua ênfase na razão, na liberdade de consciência e na crítica à intolerância religiosa, influenciou reformas promovidas pelo Estado português, especialmente sob o governo do marquês de Pombal.
Pombal adotou uma série de medidas de centralização e racionalização do poder, buscando submeter a Igreja ao controle do Estado e enfraquecer instituições como a Inquisição. Em 1774, ele determinou o encerramento das atividades do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, o que implicou a suspensão definitiva das visitas inquisitoriais às colônias, incluindo o Brasil.
Ainda que o tribunal tenha sido restaurado por alguns anos após a queda de Pombal, sua influência já não era mais a mesma. No início do século XIX, com a invasão napoleônica em Portugal, o enfraquecimento do poder absolutista e a chegada da corte portuguesa ao Brasil, a Inquisição foi oficialmente extinta em 1821, no contexto das reformas liberais que culminaram na independência brasileira.
A extinção da Inquisição representou não apenas o fim de uma instituição repressiva, mas também um marco na transição para uma nova ordem social e política em que a liberdade religiosa e a pluralidade cultural passariam, ainda que lentamente, a ganhar espaço. Contudo, os efeitos de séculos de intolerância e perseguição religiosa deixaram marcas profundas na estrutura social brasileira, perceptíveis até hoje nas formas de preconceito e exclusão de grupos historicamente marginalizados.
Dois exemplos de casos da atuação da Inquisição no Brasil:
1. Caso de Antônio José da Silva, o Judeu
Antônio José da Silva foi um dos mais conhecidos alvos da Inquisição com origem no Brasil. Nascido no Rio de Janeiro em 1705, era filho de cristãos-novos, ou seja, descendentes de judeus convertidos ao cristianismo. Sua família foi perseguida pela Inquisição ainda no Brasil, sendo sua mãe presa sob acusação de praticar o judaísmo em segredo. Posteriormente, a família se mudou para Portugal, onde Antônio José se formou em Direito e se destacou como dramaturgo.
Apesar de seu sucesso, foi acusado de práticas judaizantes e processado pelo Tribunal do Santo Ofício em Lisboa. Após um julgamento repleto de confissões forçadas e escassa possibilidade de defesa, foi condenado e executado em 1739, sendo estrangulado e depois queimado em praça pública. Seu caso simboliza a repressão sistemática contra os cristãos-novos, mesmo aqueles que haviam alcançado posição social elevada, além de demonstrar o alcance da Inquisição sobre indivíduos nascidos na colônia brasileira.
2. Caso da Visitação ao Grão-Pará e Maranhão (1763-1769)
Durante a última visita inquisitorial ao Brasil, frei Antônio de São Pedro foi enviado ao Norte da colônia para investigar denúncias de heresia, feitiçaria e práticas religiosas consideradas desviantes. A visita concentrou-se nas regiões do Grão-Pará e Maranhão, onde a presença de indígenas, africanos e mestiços favorecia uma diversidade cultural e religiosa que causava preocupação às autoridades eclesiásticas.
Foram recolhidas centenas de denúncias envolvendo práticas como o uso de benzimentos, feitiços, invocação de espíritos e curas populares. Muitos dos acusados eram mulheres indígenas ou negras escravizadas, o que demonstra o caráter seletivo e racista da atuação inquisitorial. As punições incluíram penitências públicas, flagelações e prisões. Esse episódio evidencia como a Inquisição operava não apenas contra heresias teológicas, mas também como um instrumento de repressão cultural e racial dentro do contexto colonial.
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Por Jefferson Evandro Machado Ramos (graduado em História pela USP)
Publicado em 08/04/2025
Veja Também
Fontes de Pesquisa e Bibliografia Indicada
FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e inquisição no Brasil. São Paulo: Unifesp, 2019.